Na demissão motivada pela crise do coronavírus, quem deve arcar com as verbas rescisórias?
A pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19) impactou a vida econômica e social de muitos brasileiros. Em muitos estados do Brasil, a recomendação de isolamento social permanece, agravando ainda mais a situação de muitas empresas, que impossibilitadas de dar continuidades às suas atividades, não veem outra alternativa, senão a demissão de seus empregados. Assim, para minimizar os impactos da crise em diversos setores, o governo anunciou uma série de medidas, com o intuito de minimizar os impactos da crise em diversos setores.
Diante do cenário, surgiram inúmeras dúvidas, cabendo ressaltar neste momento:
1. Considerando que a paralisação temporária do trabalho, por força da pandemia causada pelo novo coronavírus, foi motivada por ato de autoridade municipal, estadual e/ou federal, prevalecerá o pagamento da indenização que ficará a cargo do governo responsável, conforme previsto no art. 486 da CLT?
2. A pandemia causada pelo novo coronavírus pode ser considerada hipótese de força maior, nos termos do art. 501 da CLT e, por conseguinte, ser aplicado o disposto no art. 502 do mesmo diploma legal?
Passemos a análise.
Inicialmente, cabe colacionar os supracitados artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas:
Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
Art. 501 – Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.
§ 1º – A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.
§ 2º – À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.
Art. 502 – Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte:
I – sendo estável, nos termos dos arts. 477 e 478;
II – não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa;
III – havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade.
O art. 486 da CLT refere-se a uma possibilidade jurídica conhecida como “Fato do Príncipe” (factum principis), através do qual é previsto que quando a paralisação temporária ou definitiva do trabalho for motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou seja, uma ação estatal unilateral que se caracteriza por uma situação excepcional, onde caso a empresa seja submetida a um prejuízo financeiro desproporcional, decorrente do acatamento de medidas determinadas pelas autoridades governamentais, implicaria no pagamento da indenização, que fica a cargo do governo responsável, tendo como fundamentação o referido factum principis.
Dessa forma, as medidas adotadas pelas autoridades governamentais relacionadas a pandemia do coronavírus que estão implicando na paralisação temporária ou definitiva do trabalho podem ser suscitadas para fundamentar o Fato do Príncipe?
Inicialmente é importante consignar que a jurisprudência e doutrina a respeito ainda não são pacíficas, a controvérsia é latente e significativa.
Contudo, com a máxima vênia aos que são adeptos à corrente contrária, os entendimentos atuais mais lídimos são no sentido de que, as circunstâncias que motivaram a paralisação dos estabelecimentos, relacionadas à saúde pública, inviabilizam a aplicação do art. 486 da CLT, uma vez que a determinação da quarentena obedece a autoridades sanitárias e médicas brasileiras e internacionais, zelando pela vida das pessoas e pela sustentabilidade do sistema de saúde.
A fundamentação jurídica preponderantemente utilizada pelos que defendem a não aplicação do art. 486 da CLT aos casos relacionados à pandemia causada pelo COVID-19 suscita, em suma, que a situação de quarentena busca a defesa do direito coletivo sobre o privado, bem como que a inviolabilidade do direito à vida é norma constitucional, restando assegurada no art. 5º da Constituição Federal.
Outrossim, insta destacar que o Poder Público não escolheu uma única atividade ou um grupo de serviços, mas sim determinou que todos paralisassem, com exceção dos serviços essenciais, por um bem maior, qual seja, a saúde pública.
Nesse sentido, é necessário compreender o contexto da pandemia e a imperiosa necessidade de frear o avanço de um vírus capaz de colapsar o sistema de saúde e matar milhares de pessoas.
Desse modo, podemos concluir que os atos estatais são abalizados em um direito fundamental, uma cláusula pétrea, bem como as medidas foram aplicadas de forma igualitária, tendo em vista circunstâncias imprevisíveis cuja causa não pode ser imputa ao Poder Público. Estas circunstâncias somadas a decretação do estado de calamidade em decorrência da emergência de saúde pública de importância internacional, com a máxima vênia, salvo entendimento contrário, justificam a não aplicação do art. 486 da CLT à situação em análise.
Inclusive, recentemente, o juiz do trabalho Helio Ricardo Silva Monjardim da Fonseca, nos autos da Ação Civil Pública nº. 0100267-12.2020.5.01.0006, proposta pela Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, por meio da qual foi pleiteado que a União se responsabilizasse pelas indenizações trabalhistas daqueles que forem despedidos em virtude da crise, julgou a mesma extinta, sem resolução do mérito. Na decisão, o magistrado cita o artigo 486 da CLT, aduzindo:
“Vamos fazer uma breve consideração sobre o que seja o chamado fato do príncipe. Como previsto no art 486 da CLT, ocorre quando a Administração Pública impossibilita a execução da atividade do empregador e, por conseguinte, o contrato de trabalho, de forma definitiva ou temporária, por intermédio de lei ou ato administrativo. Na hipótese enfrentada a situação em muito se afasta de tal hipótese, quando em verdade estamos diante da chamada força maior”.
Assim, o Magistrado entende pela não aplicabilidade do art. 486 da CLT, assim como abordado anteriormente, citando, ainda, se tratar de força maior.
Nesse diapasão, chegamos a segunda pergunta do início do texto: A pandemia causada pelo novo coronavírus pode ser considerada hipótese de força maior, nos termos do art. 501 da CLT e, por conseguinte, ser aplicado o disposto no art. 502 do mesmo diploma legal?
Com relação às medidas divulgadas por força da pandemia causada pelo coronavírus, não houve, até o momento, nenhuma alteração a respeito do abrandamento das regras nas hipóteses de dispensa, no tocante a autorizar uma redução de valores a serem pagos. Assim, a princípio, todas as verbas trabalhistas continuam devidas, bem como deve ser observado o prazo previsto para pagamento.
É indubitável que a crise causada pelo novo coronavírus é considerada hipótese de força maior, sendo, inclusive, assim reconhecida pelo parágrafo único do art. 1º da MP 927/2020: “o disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho”.
Todavia, os empregadores precisam ter cautela ao pretender se beneficiar das regras previstas pelo art. 502 da CLT.
No primeiro momento é preciso esclarecer que o art. 501, §2º, da CLT, dispõe que “à ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.”
Desse modo, entende-se, salvo corrente contrária, que simplesmente suscitar a pandemia não é suficiente para arguir a força maior, sendo imperioso comprovar que a situação econômica e financeira da empresa foi afetada substancialmente. Cumpre destacar que a imprevidência do empregador exclui a razão de força maior, nos termos do §1º do supracitado artigo.
Assim, a princípio, não basta que a empresa passe por uma crise para ter o direito a reduzir as verbas rescisórias, nos moldes do art. 502 da CLT, alegando a força maior. O empregador precisa comprovar que a extinção da empresa ou de um dos seus estabelecimentos se deve exclusivamente às consequências da pandemia.
Em suma, para aplicar o art. 502 da CLT, o empregador precisa demonstrar, comprovar inclusive documentalmente, que efetivamente sofreu um grande prejuízo econômico em razão da pandemia do COVID-19 e que, em razão do cenário econômico do País, não consegue se restabelecer no mercado, sob pena de ser aplicado o art. 504 da CLT:
“Art. 504 – Comprovada a falsa alegação do motivo de força maior, é garantida a reintegração aos empregados estáveis, e aos não-estáveis o complemento da indenização já percebida, assegurado a ambos o pagamento da remuneração atrasada.”
Pelo exposto, salvo melhor juízo, não é cabível que o empregador venha a fundamentar a rescisão contratual pelo art. 486 da CLT em razão da pandemia do novo coronavírus (COVID 19). Noutro giro, é possível arguir força maior em decorrência da mesma e suscitar aplicação do art. 502 da CLT, desde que a extinção da empresa ou de um dos seus estabelecimentos tenha ocorrido exclusivamente em razão da pandemia.